Especialista da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) revelou que o uso de antimicrobianos em pacientes com Covid-19 aumentou a resistência a esses fármacos, o que representa um problema de saúde pública, conforme informou a Agência Peruana de Notícias.
Um dos efeitos da pandemia do novo coronavírus é o aumento do uso dos antibióticos, apesar de que menos de 15% dos pacientes hospitalizados por Covid-19 necessitam de tratamento com esse tipo de medicação. Contudo, mais de 75% dos acometidos pela doença têm recebido antibióticos, de acordo com estudos clínicos internacionais.
O alerta foi dado pelo especialista da OPAS, ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS), Marcelo Galas, durante um webinar sobre resistência antimicrobiana no contexto da Covid-19 organizado pelo Ministério da Saúde do Peru. “Essa situação representa um problema de saúde pública por aumentar a resistência aos antimicrobianos, pois deixa o pessoal da saúde com menos possibilidades para combater as infecções que ocorrem na população”, frisou Galas.
De acordo com o especialista, micro-organismos resistentes existem não só em humanos, mas também em animais, alimentos e no meio ambiente. Muitas vezes a produção desses patógenos resistentes não aparece apenas no homem, mas em outros organismos ou ambientes que posteriormente acabam por afetá-lo. Mas ele ressaltou que o principal fator de resistência aos antimicrobianos é o seu uso indevido. “De alguma forma, o uso bom ou ruim produz ou induz resistência, e quanto mais utilizado maior a resistência”.
Galas também mencionou o aumento na incidência de patógenos hospitalares multirresistentes e o impacto que isso tem sobre a mortalidade, “porque estamos ficando sem antibióticos para tratar os pacientes”. O consumo de antimicrobianos no planeta ocorre principalmente na produção de alimentos de origem animal. “Do total de antibióticos consumidos no mundo, apenas 30% ou 35% é utilizado em humanos, o restante é utilizado na produção de alimentos a partir de origem animal”, disse o especialista.
Está cada vez mais comum encontrar cepas ou espécies bacterianas que são resistentes ao uso de antibacterianos. Algumas delas, batizadas de superbactérias, são resistentes a todos os antibióticos disponíveis. Estimativas da OMS revelam que cerca de 700 mil pessoas morram no mundo a cada ano com infecção bacteriana resistente. Ainda segundo a organização, é possível que nos próximos dez anos esse total possa aumentar dez vezes. Em 2019, a entidade indicou a resistência de bactérias a antibióticos como um dos problemas de saúde pública mais urgentes do século XXI.
“A agência estima que, se nada for feito, doenças causadas por bactérias multirresistentes, para as quais nenhum antibiótico conhecido serve, podem causar a morte de mais de 10 milhões de pessoas até 2050”, afirmou em artigo para O Globo a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Segundo o professor da pós-graduação de Farmácia Clínica de Endocrinologia e Metabologia no ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Edson Luiz de Oliveira, em 30 anos, ocorrerá um marco para a história futura da humanidade, pois se atingirá o pico da ocorrência de mortes causadas por bactérias resistentes a antibacterianos.
“Existe uma previsão para 2050 sobre as mortes provocadas por infecções causadas por bactérias resistentes a antibacterianos. Nessa data, na Ásia, seriam 4,7 milhões de óbitos, na África, 4,1 milhões, na América Latina, 392 mil, na Europa, 390 mil, na América do Norte, 317 mil, e na Oceania, 22 mil”, revela Oliveira. A OMS estima que em 2050 morra mais gente por ano devido a infecções resistentes a antibióticos do que, por exemplo, câncer.
Uso indiscriminado de antibióticos na pandemia - No contexto da pandemia, circularam ao longo do último ano informações sem fundamento científico sugerindo o uso de antibióticos como a azitromicina para prevenção da Covid-19. Muitas pessoas acabaram acreditando e se medicaram com a droga – muitas vezes burlando a necessária prescrição –, acreditando que estariam se protegendo.
Segundo a empresa de software de gerenciamento de conteúdo Semrush, a busca por medicamentos na internet cresceu mais de 8.000% na pandemia. De acordo com o levantamento, apenas da azitromicina houve aumento de 152% nas pesquisas on-line. Utilizar antibiótico sem receita a pessoa não só se coloca em risco, como oferece perigo para todos em volta, porque contribui para o desenvolvimento de bactérias super-resistentes. Segundo os especialistas, ações como essa podem ter efeito lá na frente, em uma nova crise sanitária, dessa vez desencadeada por responsabilidade humana.
Galas lembrou que no início da pandemia havia ensaios clínicos com a azitromicina em pacientes de Covid-19. “A azitromicina estava sendo testada como se fazia com outros medicamentos, para tentar dar uma resposta a pacientes com infecções graves. Foi feito para prevenção, por se temer o risco de infecções que não existiam”, afirmou o especialista, lembrando que a incidência de infecções bacterianas na Covid-19 é baixa, muito menor que a da gripe.
Azitromicina é um antibiótico usado no tratamento de várias infecções bacterianas. Entre as indicações mais comuns estão o tratamento de otite média, faringite estreptocócica, pneumonia, diarreia do viajante e outras infecções intestinais. Os riscos de uso indiscriminado, sem prescrição ou recomendação médica de antibióticos são conhecidos.
“Trata-se de um problema gravíssimo, de saúde pública”, salientou ao Bahia Notícias o farmacêutico e professor da UniFTC, Mauro José Bitencourt. “Não existe comprovação de que a azitromicina ou qualquer outro antibiótico combata vírus”, destacou o especialista. O farmacêutico frisou ainda que antibiótico só serve pra uma coisa: “matar bactéria ou inibir infecção bacteriana”.
Bitencourt ainda destacou que essa classe de medicamentos é controlada desde 2010. Com isso, os antibióticos passaram a ser adquiridos sob prescrição de médicos, dentistas ou veterinários. “Se uma farmácia dispensar sem receita está promovendo ação fora da legislação”, destacou.
“Além disso, para conter a infecção bacteriana o antibiótico tem que estar em concentração adequada no sangue. O uso do medicamento dever ser feito corretamente, no horário certo, só assim consegue concentração plasmática capaz e combater a infecção. Caso se use quantidade menor ou interrompa antes do período adequado, ao invés de combater, fortalece a bactéria, fazendo com que ela desenvolva resistência”, completou Bitencourt.
“O conhecimento dos diferentes mecanismos de resistência e sua interpretação clínica-laboratorial é essencial para a escolha terapêutica mais adequada”, acrescenta Oliveira. Segundo ele, o sucesso da terapêutica antimicrobiana depende de três elementos: fármaco, hospedeiro e organismo.
É preciso avaliar o micro-organismo, a condição clínica, ou seja, a patologia, a sensibilidade, o fármaco envolvido e o paciente. “A eficácia do uso de um antimicrobiano vai depender do micro-organismo, da doença estabelecida, do paciente e do fármaco escolhido, que será utilizado de acordo com a sensibilidade. Deve-se conhecer, ainda, aspectos relativos à farmacocinética”, diz o professor do ICTQ.
O uso equivocado de antibacterianos envolve a escolha incorreta do fármaco (aplicá-lo em uma infecção viral, por exemplo), dosagem inadequada, tempo de utilização incorreto, utilização de terapêutica de prova em pacientes febris sem diagnóstico definido e via de administração inadequada. “Ou seja, erro de horário, de dose, de medicamento não autorizado, da via de administração, da condição do paciente. Tem que conhecer detalhes para que o antimicrobiano seja usado corretamente”, frisa Oliveira.
Em relação às infecções bacterianas, Galas destacou que 50% das mortes por Covid-19 mostram um uso exagerado de antibióticos, tanto na comunidade quanto em nível hospitalar, muito superior aos percentuais relatados de infecção secundária.
“Quase todos os pacientes que têm Covid-19 recebem antibióticos antibacterianos de que não precisam, quando na realidade o número de coinfecções a infecções secundárias está entre 10% e 15%. O restante dos pacientes não precisaria de tratamento antimicrobiano e o está recebendo, o que faz com que os patógenos adquiram resistência”, finalizou o especialista da OPAS.
Publicado originalmente em ictq.com.br, no dia 19 de setembro de 2021. Reprodução citada a fonte.